Marielle Franco foi eleita pelo voto da favela ?

O assassinato da vereadora Marielle foi o fato político de maior repercussão dos últimos anos no Brasil, tanto nas mídias tradicionais como nas rede sociais. Segundo o pesquisador Fabio Malini (Labic/UFES), a repercussão no Twitter a respeito do caso bateu recorde desde o início da sua pesquisa em 2012 e, além disso, trouxe alguns fatos novos: pela primeira vez não houve uma polarização entre esquerda e direita.

No roldão do ato terrorista, nossas timelines foram tomadas por uma avalanche de boatos, notícias falsas e comentários preconceituosos. Um deles chamou a nossa atenção: o blog "O antagonista" publicou uma matéria recheada de números e intitulada "Marielle não foi eleita pelas favelas

Pode-se supor que uma das intenções do blog (que notadamente tem um viés mais à direita) seria mostrar que a eleição da Marielle não era representativa e era como qualquer outra do PSOL, ou seja, tendia mostrar que era o voto da chamada "esquerda caviar" e não um voto popular, mais especificamente, por moradores da favela.

O interessante do artigo é que, ao mesmo tempo que tentava desmerecer o mandato da vereadora, quebrava uma das teses dos difamadores que diziam que a Marielle tinha sido eleita com o voto dos traficantes da favela da Maré.

Entretanto, ao ler o artigo achamos os números muito estranhos, já que sabíamos que Marielle tinha forte presença e atuação em várias favelas e, em especial, na favela da Maré onde tinha nascido e crescido. Era "cria" da Maré, conforme ela mesma dizia.

Decidimos então tirar a prova dos números apresentados pelo blog e chegamos a uma conclusão um pouco diferente e que pode ser visualizada nos argumentos abaixo. Comecemos pela tabela abaixo:

Mapa dos votos da Marielle por Região

ZONA SUL: 15.072
ZONA NORTE: 8.514
GRANDE TIJUCA: 7.084
ZONA OESTE: 3.994
LEOPOLDINA: 3.214
JACAREPAGUA: 3.004
CENTRO: 2.094
BARRA: 1.963
ILHA DO GOV: 1.563
TOTAL: 46.502

Sim, realmente Marielle não foi eleita somente pela favela e teve 32% dos votos apenas na Zona Sul, mesmo considerando que uma parte da população da Zona Sul também é composta por quem mora na favela! Mas o ponto central que a tabela mostra é que ela recebeu votos em todas as regiões e em 100% das seções eleitorais da cidade com mais de 1000 eleitores.

Pode-se até contestar esta análise se formos comparar o número de eleitores de cada região com o número de votos. Mas, como podemos ver no gráfico ao lado, a Zona Sul é a terceira região com mais eleitores da cidade. E ao calcularmos o percentual dos votos da Marielle pelo número de eleitores da Zona Sul, vê-se que ela obteve 2,6% de todos os votos válidos. Ou seja, se o Rio de Janeiro fosse a Zona Sul, ela teria sido a 3a vereadora mais votada. Inclusive, a própria vereadora confirma tal fato em entrevista após a sua vitória.

Entretanto, o que a tabela não mostra é que ela também foi eleita pelo voto da favela! Vamos aos números:

Montamos primeiramente uma consulta somente pelos bairros que compõe a região da Leopoldina onde está localizada a favela da Maré. Fazendo a consulta simples apenas no bairro da Maré, encontramos apenas 50 votos! Esse número, a princípio, corrobora o número indicado pelos "Antagonistas" que disseram que ela recebeu apenas 30 votos na Rocinha.

Mas vamos fazer uma análise mais criteriosa? Quantos votantes existem nas seções eleitorais da Maré? Pelo TRE, são apenas 8.984, ou seja, certamente um número muito inferior ao total de habitantes na região, mesmo considerando apenas os aptos para votar.

A explicação é fácil: como as seções eleitorais da Maré são novas, elas tem menos eleitores cadastrados. No frigir dos ovos, a grande maioria dos moradores da Maré votam em seções mais antigas como em Ramos e Bonsucesso. E nas seções da Rocinha ? O TRE indica que são apenas 3.859, ou seja, obviamente o número não representa nem de perto o número de moradores da Rocinha. E da mesma forma, quando contabilizamos o número de votantes de São Conrado, o número chega a 37.026 eleitores apesar do bairro ter apenas 4.349 habitantes segundo o Censo de 2010. Ou seja, os moradores da Rocinha votam nas seções eleitorais de São Conrado.

Partindo dessa constatação, realizamos uma nova consulta considerando as seções dos 3 bairros e bingo! Marielle teve mais de 2.000 mil votos. Tal número mostra que ela recebeu, proporcionalmente, mais votos na região da Leopoldina (que engloba os bairros de Ramos, Bonsucesso e Maré) do que em outras regiões!

E sobre a falsa afirmação de que Marielle foi eleita com o apoio dos traficantes ?

Aqui cabe explicar um índice interessante que estamos estudando faz algum tempo que chamamos de capilaridade de uma candidatura. A candidatura da Marielle, por exemplo, tem alta capilaridade pois atinge 100% das seções eleitorais com mais de mil eleitores (o número mil não é aleatório e tem uma razão metodológica). Já um candidato que só tem votos em determinadas seções eleitorais tem baixa capilaridade e tal indicador pode realçar o chamado "curral eleitoral", ou seja, locais onde um determinado político consegue angariar grande parte dos votos.

Vendo especificamente o caso da Maré, veremos que existem políticos que tem grande concentração de votos na região e baixíssima capilaridade. Geralmente são indivíduos ligados a partidos conservadores que servem de base de sustentação do PMDB, PTB, etc. e ligados às associações de moradores que existem nas favelas. Mas, mesmo com toda essa informação, não seria leviano insinuar que eles receberam "votos" por orientação do tráfico só porque eles têm seus votos concentrados em áreas onde a milícia ou tráfico detém o controle territorial ?

Conclusões

A partir dos dados levantados, fica evidente que uma mera análise geográfica do mapa eleitoral não se encaixa bem em uma cidade como o Rio de Janeiro onde o asfalto e a favela estão mesclados. Através de índices como o de capilaridade, é possível perceber a amplitude de uma candidatura mas não que ela representa um setor da sociedade já que as forma como as seções eleitorais são determinadas impede tal análise.

Efetivamente não podemos afirmar que os "antagonistas" usaram de má fé para corroborar a tese da matéria mas ficou claro que eles se equivocaram bastante. Assim fica o alerta para os jornalistas: quando forem usar dados abertos para corroborar algum argumento, procurem se certificar das análises realizadas para que a matéria não perca legitimidade.

Dicas para outras leituras sobre o assunto

Se você quiser fazer uma consulta online pelos resultados das eleições sem precisar baixar os arquivos, nossa recomendação é o Divulga Web do próprio TSE. Clique aqui para acessá-lo

O livro Eleições e Financiamento de Campanhas no Brasil do pesquisador Vitor de Moraes Peixoto traz um excelente recorte sobre os índices comumente utilizados nas análises dos resultados das eleições bem como do financiamento de campanhas políticas.

Considerações sobre o processamento.

Para que outros pesquisadores ou jornalistas possam baixar os dados, comprovar nossas análises e refazer os cálculos que realizamos, disponibilizamos abaixo os links de todas as rotinas que executamos para chegar aos números aqui apresentados.

Todas as nossas análises no FARMi seguirão esse procedimento até mesmo para que sirva de exemplo para que os jornalistas procurem sempre disponibilizar os dados e o processamento de suas análises, inclusive para que haja maior legitimidade da matéria jornalística.

Base do TSE utilizada

Relação entre Seções Eleitorais e Bairros na cidade do Rio de Janeiro: esta relação foi montada por nós já que tal informação não é achada facilmente no site do TRE-RJ. No link principal, só aparecem as novas seções eleitorais, ou seja, muitas seções que tiveram votos em 2016 não aparecem na listagem atual. Além disso, a região da cidade é um dado que não consta no TRE e foi montado manualmente por nós.

Notebook em Python utilizado para realizar cada um dos cálculos

Este artigo foi escrito pelo doutorando em Ciência da Informação Josir Gomes e contou com a contribuição do Prof. Dr. Arthur Bezerra e do doutorando Rodrigo Duarte Guedes.